A transição
Passado o calor da campanha, feridas vão sendo cicatrizadas e, num gesto de civilidade política e respeito ao interesse público, os prefeitos, atual e eleito, agendam reunião de transição pra uma troca de figurinhas.
Informado do colóquio, este colunista rogou à assessoria do alcaide Teixeirinha uma autorização pra testemunhar o encontro. Dudu Firewall, sempre ele, fiel comissário dos ‘oitoanostucanos’, brecou minhas bisbilhoteiras intenções.
Abelhudo, o escriba evocou a amizade de infância pra insistir com Dudu. Creiam, leitores, o gélido coração do Dudu amoleceu. Não a ponto de franquear minha intrusa presença entre os poderosos, mas num briefing detalhado das três horas do diálogo palpitante travado entre Nerso e Teixeirinha. Por limitações de espaço, a coluna se reserva o direito de publicar os ‘melhores momentos’:
—Sabe, Laert, no começo do seu governo eu acreditava que você tinha uma visão humanista da coisa pública. Tanto acreditei, que aceitei integrar a equipe como diretor de departamento. Ledo e ivo engano, meu caro. E falo isso sem qualquer resquício de revanchismo. Falo com uma ponta de tristeza em ver uma liderança tão jovem dar de ombros aos anseios da plebe trabalhadora pra gerir a cidade norteado pelos interesses de meia dúzia de oligarcas. Eu tentei lhe abrir os olhos, querido, mas você viu conspiração onde só existia apego ao bem público e compaixão com os menos favorecidos. Você administra como um autêntico ditadorzinho, não ouve a voz das esquinas, centraliza as decisões e comanda a máquina com rompantes fidel-castristas. Triste...
—Ao contrário do que você brada, Nerso, sou um democrata que aceita com serenidade a vontade soberana das urnas. Aceitar, entretanto, não significa concordar. Não concordo porque acho que a cidade vai retroceder sob a sua batuta. E vai retroceder porque a administração pública não tem mais espaço pro romantismo dos anos 70 e 80. A gestão, hoje, tem que ser profissional, numérica, planilhada, plugada com conceitos de qualidade total e antenada com os gurus do mundo acadêmico. Sei que você gosta de passar a imagem de um homem simples, que mete o pé no barro, dispensa a gravata, põe um capim no canto da boca, fala ‘caipirês’ e se mistura os pobres como se fosse um deles. Isso é bacana, Nerso, mas só funciona bem em novela das 6. O trato da coisa pública requer menos performances matutas e mais profissionalismo.
—É, Laert, o salutar do regime democrático é que ele abarca essa diversidade de pensamento. Ora governam uns que são guiados por planilhas e gráficos do Excel, ora governam outros que não decidem sem um olho-no-olho com a ralé. Uns usam o notebook sob ar-refrigerado, outros usam caneta e bloquinho de papel sentindo o cheiro do povo.
—Tem razão, Nerso, uns são talhados pra dirigir Real Madrid e Barcelona, outros ralam pra botar em campo Bonsucesso e Olaria.
A tarde caiu junto com o fim da troca de farpas. Antes das despedidas, os prefeitos se dirigiram à sacada do gabinete. Contemplando o majestoso crepúsculo, concordaram que não há nada melhor que sorvete de macaúba, chácara no Bairro Alegre, chope no Tekinfin, caminhada no Mantiqueira, café na Dona Gertrudes, pão francês da Dona Elza, peixe no Foguinho, cinema no Ouro Branco e morar a dois passos da Tereziano Vallim.
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