sábado, março 05, 2005

Hélio, o pai

O ano era 1976 e o mês, Fevereiro. Numa destas boçalidades da existência humana, um acidente automobilístico tirou a vida de um homem, um grande homem, pai de dois filhos, quase três, porque sua mulher estava grávida. Este último rebento deu seu primeiro choro dez dias após o estúpido desastre.
Meu irmão caçula não conheceu o pai.
Eu também conheci-o muitíssimo pouco. Quando a eternidade veio buscá-lo minhas primaveras eram somente cinco.
Hélio do bigode espesso. Hélio do Banespa. Hélio de longas baforadas no seu cachimbo. Hélio do Opala verde e das maravilhosas viagens com a família. Hélio dos discos de vinil, de Roberto Carlos, de Chico Buarque, de Martinho da Vila, de Benito di Paula.
Hélio de poucas lembranças e muita saudade.
Hélio amante da carne vermelha. Conta minha mãe que ele fazia questão de ir ao açougue do seu Dito Sinhá para escolher o melhor corte. Depois, deleitava o paladar com um belo bife. Os cromossomos foram vigorosos e legaram a este escriba e seu filho o mesmo apreço pelo traseiro bovino. Laurinho e eu perdemos a razão por uma picanha sangrando.
No curto período em que moramos na vizinha Vargem Grande, as tardes de sábado eram sagradas. Passeios de carro, onde eu viajava em pé no banco de trás, seguidos de pit-stops na Padaria do Zé Candinho para saborear suas lendárias bombas de chocolate. Naquela época bomba não era um doce banalizado como hoje. Era iguaria fina de fim-de-semana.
Meu vizinho e amigo desde o berço, Cirto, conta uma história passada alguns meses antes de sua morte. Com sua habitual veia cômica, Cirto relembra um dia que fomos nos entreter com pedalinhos em Águas da Prata. No fim do passeio paramos no bosque para comer o tradicional milho-verde. Eu preferi pastel. Vendo o filho atrapalhado com aquela enorme massa e insignificante recheio, meu pai fuzilou com sarcasmo: “Ô Cirto, olha só o pastel do Lauro Augusto, parece até envelope de ofício!!!”
As vezes bate uma melancolia, um inconformismo com os desígnios divinos por ter me privado tão cedo da convivência paterna. Numa altura da minha adolescência cheia de conflitos, duvidei até da existência de Deus.
Minha mãe, devo reconhecer, fez o que pôde e o que não para transformar em gente aqueles três moleques. Sofreu mais do que todos, mas, no saldo final, sem falsa modéstia, reconheço-me como bom fruto da educação “anamaria”. Este reconhecimento, entretanto, não me tira a convicção de que, se meu pai fosse vivo, tanta coisa seria diferente pra melhor na vida da minha família. Não falo só da presença física do homem, falo, também e principalmente, do timoneiro que conduz a embarcação para águas tranqüilas.
Lá no plano celestial, imagino meu pai cachimbando e papeando com o “Homem Barbudo” sobre os rumos da carreira profissional do filho mais velho: “Ô Chefe, trabalho em banco é tão estressante. Será que o menino quer se matar de trabalhar como o pai?”
Aqui do andar de baixo o neo-bancário descendente responde:
“Pai, no trabalho quero ter o mesmo sucesso que você teve. Mas não é o mais importante. Quero ser seu espelho na plenitude da condição humana. Quero ser o paradigma de homem e pai que você sempre foi.”

1 Comments:

At 6:40 PM, Blogger Unknown said...

Neste dia dedicado especialmente aos pais, tem aqueles momentos em que refletimos sobre a nossa vida e nestas reflexões, as lembranças afloram.
Sim, a falta de alguém querido dói, mas, estas lembranças, como em teu caso são maravilhosas,e, serão os alicerces para a tua vida, como tão bem apresentas em teu escrito.
Fico eu aqui também a meditar e sentir aquela saudade de meu pai, aquele que me deu seu nome, que a dez anos nos deixou, mas lembro com saudade doída, meu avô materno, aquele que me criou, que a 22 anos foi levar sua sabedoria para outras paragens e sei que lá na eternidade ele continua a fazer as suas pinturas sacras nas igrejas, a construir seus brinquedos para os netos, a ler seus livros, sentado em sua saudosa cadeira de balanço.
Como são boas nossas lembranças.

 

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