O homem probo e os decibéis malditos
Evaldo, ou Vardão para os mais chegados, é um cidadão probo. Honra religiosamente seus deveres com o Fisco, é zeloso pai de família, leal com os amigos e labora com devotada honestidade pra ganhar o pão (e a cervejinha) de cada dia.
Este homem reto viaja todo santo dia até a vizinha Mogi Guaçu, onde verte o suor pra fazer jus ao bacalhau do Porto que alimenta sua prole e ao vinho de boa safra que rega seu espírito. Este colunista e mais três sanjoanenses de boa cepa, que também batem cartão nas paragens guaçuanas, acomodam-se diariamente no velho Santana do Vardão. Veículo este que a sabedoria popular alcunhou de Sucatão. Mas deixemos de lado os carros sem manutenção e voltemos ao leito carroçável.
Após extenuante jornada de trabalho os justos têm como recompensa um refazimento no íntimo de seus lares. Uns lêem, outros navegam na internet, alguns relaxam na TV, outros na música. Vardão faz tudo isso e ainda encontra tempo pra fazer artesanato com sucata. Que fique bem dito: o Sucatão ainda não foi objeto de nenhuma obra do nosso justo e reciclado artista de fim de semana.
Nos últimos tempos o que seria este saudável refazimento doméstico se transformou num aborrecimento dos mais desgastantes.
E por que nosso íntegro artesão não mais consegue fruir do sossego em sua morada?
Defronte à sua residência foi instalada uma igreja evangélica, cujo culto segue o rito neo-pentecostal, ou seja, louvores fervorosos, orações estridentes e música que maltrata os tímpanos.
Vardão como sujeito plural e defensor da Constituição que é respeita todas as crenças e religiões.
O quê Vardão com toda razão refuta são os decibéis hostis que invadem os recônditos de sua moradia e perturbam o seu necessário descanso. O volume do som é tal e tamanho que parece imputar uma surdez ao Todo Poderoso.
Meses atrás, incomodado e pressionado pela família, Vardão fez uma prece silenciosa e chamou o “pastor do barulho” pra um colóquio amigável. Na hora, o homem das rezas ruidosas pareceu entender o problema e até prometeu providências para manter as glorificações ardorosas dentro dos limites do templo. Vardão, como homem de boa-fé, deu crédito às palavras do mentor religioso.
A terra não sarou. Vardão foi iludido pelo homem e a agressão aos tímpanos e ao bom senso só fez aumentar.
Atormentado pela reincidente afronta, Vardão sucumbiu à gritaria e reuniu os seus para comunicar uma decisão radical: vender a casa e buscar tranqüilidade num canto onde seus direitos sejam respeitados.
Dito e feito. Pra resgatar qualidade de vida, o homem probo capitulou aos decibéis malditos.
Aleluia, irmão!
p.s. Vardão convida nossos nobres vereadores a um passeio pelas redondezas do templo do barulho. Os interessados no tour deverão contatar o e-mail da coluna. Recomenda-se levar protetor auricular.
0 Comments:
Postar um comentário
<< Home