Infância, Memórias e Viagens
Dia destes viajando a trabalho pela bela geografia montanhosa do sul das Minas Gerais fui tomado por um turbilhão de lembranças de viagens da minha infância. Boas lembranças e muita saudade.
Cruzar a divisa entre SP e MG é lembrar minha avó Fiuca que, sempre nestas horas, entoava a tradicional cantiga: "Ó Minas Gerais, quem te conhece não esquece jamais...", no que era seguida em coro por toda a família. Viajar com vovó Fiuca sempre foi recreio dos mais animados.
Dos meus primeiros cinco anos de idade emergem fragmentos de memória de viagens ao litoral. Praia de Itararé em São Vicente era o nosso destino.
Lembro-me muito bem do imponente (na época era) Opala verde-oliva do meu pai descendo a serra abarrotado de malas e bugigangas, embalado pela trilha sonora do Rei: "Eu quero ter um milhão de amigos e bem mais forte poder cantar...", berrava o então cabeludo Roberto Carlos no toca-fitas do potente Opalão.
Era de lei nas férias litorâneas de verão ir ao espetacular Circo Thiany que, sempre em Janeiro, erguia sua lona e deixava maravilhados os veranistas da baixada santista. Também não perdíamos o tradicional show de animais marinhos que acontecia num parque situado na divisa entre Santos e São Vicente. Ouço claramente, até hoje, o adestrador gritando em castelhano ao casal de golfinhos: "Flipper, Caroline, salvando a bonequinha", para delírio da platéia infante que ali estava.
Alguns anos mais tarde, sem meu pai mas com minha avó, nossas viagens ao litoral eram capitaneadas por meu primo, Zé Pedro, que conduzia-nos na superlotada Variant branca da minha mãe. Até hoje não entendo como cabia tanta gente e carga no velho carro. Zé Pedro, minha mãe, minha avó, tia Amanda, eu, meus dois irmãos e Zé Augusto, meu primo de Goiânia, além de toda a sorte de bagagem e quinquilharias do clã Buscapé. O bom astral de Janeiro e a ânsia por areia e água salgada faziam com que relevássemos o desconforto da viagem.
Destes périplos beira-mar não me esqueço do sabor inigualável do strogonoff de camarão da minha vó, dos siris degustados no restaurante Boa Vista e, não sei porque, da música Bandolins de Oswaldo Montenegro. Coisas da memória que a gente não explica.
Se, no verão, a praia era sagrada, nas férias de Julho o destino era alternado. Ora Belo Horizonte, ora Goiânia.
Em Belo Horizonte ficava a casa de meu tio Ivan, um próspero empresário da capital mineira. Meu tio mandava um Alfa Romeo com motorista particular buscar eu e meu irmão. Era a glória para duas crianças. Rumávamos até a capital das alterosas como príncipes caipiras esparramados no banco traseiro do luxuoso carro.
Meu tio tinha uma bela chácara nas cercanias de BH. Eram um verdadeiro deleite estas férias, quando brincava muito com Ana Paula, uma prima com quem eu tinha muita afinidade e verdadeira adoração.
Em Goiânia também gozei férias inesquecíveis. No planalto central tinha o monumental tobogã do parque Mutirama, um conjunto aquático fabuloso no clube Jaó e baciadas do delicioso pão de queijo da tia Mariana. No final dos anos 70 e começo dos anos 80, pão de queijo era uma iguaria rara por estas bandas do interior paulista. Comíamos até não poder mais.
Numa destas férias na capital de Goiás demos uma esticada até Brasília. No portão do Palácio do Alvorada vimos o então presidente Ernesto Geisel passar num Galaxy preto com persianas no vidro traseiro. Foi a primeira e única vez que aplaudi um ditador.
Bons tempos de uma época em que Hélio, meu pai, era um funcionário com carreira promissora no Banespa, Ana Maria, minha mãe, era professora estadual numa escola rural, Dona Fiuca, minha vó, era "o nome" em alta costura nesta cidade e o autor deste texto, além de adorar viajar com a família, era um devorador dos gibis do Cebolinha.
Hoje, um acidente automobilístico fez com que meu pai não esteja mais entre nós, minha mãe está aposentada e perdeu o pique de viajar, Dona Fiuca costura para os anjos na eternidade e este escriba luta com a vida e contra seu espírito perdulário para juntar uns trocados e continuar viajando.
p.s. A semana atribulada faz com que o colunista utilize um texto não inédito lavrado a quatro anos atrás. Um prato requentado sim, é verdade, mas sem falsa modéstia, com um renitente sabor de quero mais.
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