domingo, março 06, 2005

Dois mundos

O leito carroçável da rua Ademar de Barros aparta dois mundos. Separadas por uns poucos metros de massa asfáltica, coexistem, por enquanto, realidades distintas. A proximidade entre os ambientes é só física. Conceitualmente, eles são separados por uma colossal distância.
De um lado, o grande supermercado, um trator da economia moderna, um ícone da realidade apressada, e gelada, dos centros urbanos. Corredores exageradamente iluminados, e indiferentes, com aquelas insensíveis luzes brancas. Funcionários com aquela solicitude forçada, aquele sorriso impessoal, e frio, de comercial de creme dental. O recinto é estupidamente limpo, com uma assepsia de irritar.
Na seção de promoções-relâmpago, um rapaz com voz de locutor de FM berra num microfone sem fio piadinhas bobocas pra atrair consumidores dispostos a comprar lazanhas congeladas que estão no limite do prazo de validade. O moço é esforçado, brinca com as pessoas tentando humanizar o ambiente. Inútil, naquele espaço de consumo a condição humana é secundária. O homem é preterido por leitores óticos, balanças digitais e códigos de barras.
No escritório refrigerado, o empresário estressado, com o laptop plugado em sites de indicadores econômicos, grita ao telefone para o gerente dizendo que as vendas precisam subir, caso contrário, ele ameaça, cabeças vão rolar. No economês moderno é a chamada “reengenharia no corpo funcional”.
Atravessar a rua é voltar cinqüenta anos no tempo.
Do outro lado, o velho empório de secos e molhados, um dinossauro do comércio contemporâneo. O local tem poucos watts de luz que parecem menos ainda porque as lâmpadas são cobertas por uma grossa camada de poeira. O chão é fosco, áspero, revestido por uma cerâmica extinta quando João Paulo II ainda era um reles coroinha. As paredes não vêem tinta desde a Copa de 1970. No teto, penduradas, teias de aranha disputam espaço com gomos de lingüiça caseira. Saborosas esferas de queijo meia cura fazem a alegria das obesas ratazanas que infestam o armazém. Gaiolas, penicos e rolos de fumo de corda completam o cenário anos 50.
Atrás do balcão de madeira corroído pelos cupins, seu Amaro, numa antipatia sincera, cansada, trazendo no corpo marcas de sete décadas levando bordoadas da vida.
O septuagenário comerciante empunha o lápis de ponta grossa e faz, no papel amarelecido, contas e mais contas.
Contas que podem adiar por breve tempo o inexorável dia em que as velhas portas enferrujadas serão baixadas pra nunca mais serem levantadas.

p.s. na crônica acima, seu Amaro foi claramente inspirado no seu João Camargo, o popular Camarguinho, que durante décadas resistiu, com seu empório, aos ventos da modernidade. Ao que consta, o velho armazém está passando por reformas. Camarguinho, morto dias atrás, talvez não tenha suportado a contemporaneidade que urge em alvejar àquelas paredes pardas. Com o perdão do trocadilho, fica o Fica-Fica, como o último estandarte do comércio romântico da não menos romântica, e quase toda desfigurada, rua Ademar de Barros.